terça-feira, julho 13, 2010

Resistir é vencer

A Margarida é uma daquelas meninas tão bonitas que podiam aparecer numa capa da "Pais e filhos". Ainda tem o cabelo louro escuro intacto e comprido, não obstante a quimio; tem umas feições perfeitinhas e uns olhos castanhos que irradiam ternura.

A mãe da Margarida saiu do quarto com a desculpa que ia entregar o termómetro à enfermeira. Nas costas da Margarida fez sinal que não anunciava a sua partida para almoço para evitar lágrimas.

Antes de sair afagou o ombro da filha e disse, "Margarida ficas com a menina, está bem? A mãe já vem."

A Margarida, frente ao seu livro de colorir da Hello Kitty que não pintava nem parecia apreciar especialmente, não reagiu.

"Parece que o gato lhe comeu a língua, já nem comigo fala, a minha filha"

"Margarida, a mãe já volta" voltou a insistir, atiçando um comentário sem sucesso.

Disse-lhe para ir descansada.

Nos primeiros momentos gosto de testar o terreno e deixo a criança decidir a interacção. Há miúdos que choram muito, que fazem beicinho, que atiram brinquedos para o chão, crianças que reagem bem e continuam a conversar e a brincar comigo como se nada fosse, e até aqueles que só esperavam que o pai ou a mãe saísse para serem mais expansivos.

A Margarida parecia quase catatónica. De vez em quando escorria-lhe um bocadinho de baba da boca que eu limpava o mais cuidadosamente possível.

Meti conversa, sem sucesso. A Margarida nem levantou os olhos do livro de pintar.

Olhei para a boca de onde ameaçava cair mais uma gotinha de saliva e reparei nas aftas que vinham até aos lábios.

Percebi. Dói à Margarida falar.

Tentei então pedir-lhe para me fazer um desenho, mas nada. Ou perguntar coisas com que ela pudesse reagir com as cores que tinha disponíveis (de que cor é o céu? qual é a cor dos morangos? qual é a tua cor preferida?...)

Perguntei-lhe após quase 20 minutos de diversas, afincadas, imaginativas e inglórias tentativas de interagir, se podia pintar o seu livro. Não respondeu, novamente.

Peguei num lápis, com algum desânimo, e disse "o urso é castanho?"

E comecei a pintar de forma muito "lisinha", como aos meninos se ensina que é "bem".

depois de pintar a cara, perguntei "de que cor é o braço?" e como não me respondeu, coloquei debaixo do nariz dela o lápis castanho e o lápis vermelho. "Então? Castanho ou vermelho?" sem esperar resposta.

Apontou-me o lápis vermelho.

Pintei a perna do urso de vermelho o mais perfeita e rapidamente que pude. E agora? a outra perna?

desta vez apontou voluntariamente para o verde.

e o braço?

apontou para o roxo.

E as calças da kitty? e a camisola? e a cara?

Aos poucos a Margarida começou a ficar entusiasmada com o desenho que podia comandar com um apontar de dedos e minutos mais tarde olhou para mim e resmungou "nariz!"

Queres que te limpe o nariz? ok, espera. fui buscar mais papel e mandei-a fungar. trouxe papel extra para a baba.

Pegou num deles e limpou a baba que tinha, meio zangada.

"Desculpa Margarida não tinha visto a baba. Há mais?"

Olhei para a mesa de outro ângulo e uma gota tinha-se-me escapado.

Limpei com afinco e alegria pela interacção.

Finalmente a Margarida deixou de fazer peso sobre o livro e deixou-me mudar a página. Da forma absurda, bizarra e inesperada como só as crianças sabem misturar e atribuir cores aos objectos do quotidiano recomeçou com entusiasmo redobrado a silenciosamente comandar-me as cores, mesmo perante a minha incredulidade, "a cereja a preto, Margarida?!"

Quando a mãe e a comida chegaram, nem eu nem ela queríamos parar a nossa brincadeira silenciosa.

Mas tinha de ser. Fui afiar e desinfectar os lápis para lhos devolver e acenou-me com um sorriso discreto quando lhe atirei um beijo da porta do quarto.

Recebemos sempre mais do que damos no voluntariado. Sempre. Impressionante.

3 comentários:

eternal sunshine disse...

beautiful :)

xtrelinha* disse...

impressionante como me arrepio e emociono sempre com as tuas partilhas.. obrigada por conseguires fazer aquilo de que eu não sou capaz.. :) um enorme bem-haja pela tua coragem, princesa! beijo enorme*

xtrelinha* disse...

impressionante como me arrepio e emociono sempre com as tuas partilhas.. obrigada por conseguires fazer aquilo de que eu não sou capaz.. :) um enorme bem-haja pela tua coragem, princesa! beijo enorme*