A Margarida é uma daquelas meninas tão bonitas que podiam aparecer numa capa da "Pais e filhos". Ainda tem o cabelo louro escuro intacto e comprido, não obstante a quimio; tem umas feições perfeitinhas e uns olhos castanhos que irradiam ternura.
A mãe da Margarida saiu do quarto com a desculpa que ia entregar o termómetro à enfermeira. Nas costas da Margarida fez sinal que não anunciava a sua partida para almoço para evitar lágrimas.
Antes de sair afagou o ombro da filha e disse, "Margarida ficas com a menina, está bem? A mãe já vem."
A Margarida, frente ao seu livro de colorir da Hello Kitty que não pintava nem parecia apreciar especialmente, não reagiu.
"Parece que o gato lhe comeu a língua, já nem comigo fala, a minha filha"
"Margarida, a mãe já volta" voltou a insistir, atiçando um comentário sem sucesso.
Disse-lhe para ir descansada.
Nos primeiros momentos gosto de testar o terreno e deixo a criança decidir a interacção. Há miúdos que choram muito, que fazem beicinho, que atiram brinquedos para o chão, crianças que reagem bem e continuam a conversar e a brincar comigo como se nada fosse, e até aqueles que só esperavam que o pai ou a mãe saísse para serem mais expansivos.
A Margarida parecia quase catatónica. De vez em quando escorria-lhe um bocadinho de baba da boca que eu limpava o mais cuidadosamente possível.
Meti conversa, sem sucesso. A Margarida nem levantou os olhos do livro de pintar.
Olhei para a boca de onde ameaçava cair mais uma gotinha de saliva e reparei nas aftas que vinham até aos lábios.
Percebi. Dói à Margarida falar.
Tentei então pedir-lhe para me fazer um desenho, mas nada. Ou perguntar coisas com que ela pudesse reagir com as cores que tinha disponíveis (de que cor é o céu? qual é a cor dos morangos? qual é a tua cor preferida?...)
Perguntei-lhe após quase 20 minutos de diversas, afincadas, imaginativas e inglórias tentativas de interagir, se podia pintar o seu livro. Não respondeu, novamente.
Peguei num lápis, com algum desânimo, e disse "o urso é castanho?"
E comecei a pintar de forma muito "lisinha", como aos meninos se ensina que é "bem".
depois de pintar a cara, perguntei "de que cor é o braço?" e como não me respondeu, coloquei debaixo do nariz dela o lápis castanho e o lápis vermelho. "Então? Castanho ou vermelho?" sem esperar resposta.
Apontou-me o lápis vermelho.
Pintei a perna do urso de vermelho o mais perfeita e rapidamente que pude. E agora? a outra perna?
desta vez apontou voluntariamente para o verde.
e o braço?
apontou para o roxo.
E as calças da kitty? e a camisola? e a cara?
Aos poucos a Margarida começou a ficar entusiasmada com o desenho que podia comandar com um apontar de dedos e minutos mais tarde olhou para mim e resmungou "nariz!"
Queres que te limpe o nariz? ok, espera. fui buscar mais papel e mandei-a fungar. trouxe papel extra para a baba.
Pegou num deles e limpou a baba que tinha, meio zangada.
"Desculpa Margarida não tinha visto a baba. Há mais?"
Olhei para a mesa de outro ângulo e uma gota tinha-se-me escapado.
Limpei com afinco e alegria pela interacção.
Finalmente a Margarida deixou de fazer peso sobre o livro e deixou-me mudar a página. Da forma absurda, bizarra e inesperada como só as crianças sabem misturar e atribuir cores aos objectos do quotidiano recomeçou com entusiasmo redobrado a silenciosamente comandar-me as cores, mesmo perante a minha incredulidade, "a cereja a preto, Margarida?!"
Quando a mãe e a comida chegaram, nem eu nem ela queríamos parar a nossa brincadeira silenciosa.
Mas tinha de ser. Fui afiar e desinfectar os lápis para lhos devolver e acenou-me com um sorriso discreto quando lhe atirei um beijo da porta do quarto.
Recebemos sempre mais do que damos no voluntariado. Sempre. Impressionante.
3 comentários:
beautiful :)
impressionante como me arrepio e emociono sempre com as tuas partilhas.. obrigada por conseguires fazer aquilo de que eu não sou capaz.. :) um enorme bem-haja pela tua coragem, princesa! beijo enorme*
impressionante como me arrepio e emociono sempre com as tuas partilhas.. obrigada por conseguires fazer aquilo de que eu não sou capaz.. :) um enorme bem-haja pela tua coragem, princesa! beijo enorme*
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