sábado, maio 15, 2010

2 anos

Demorei um ano a ganhar coragem para voltar ao cemitério depois de ela morrer. Nesse dia estava fechado.

Levei mais nove meses para aceitar um pretexto e voltar à sua tumba.

Estava sol e eu levava um grande ramo de margaridas.

Nove meses antes, das grades do cemitério, chorei baba e ranho, ao ponto de ter uma vaga ideia de que nesse dia chovia muito, mas não ter muita certeza.

No dia que fiquei de fora do cemitério, chorei pela falta que ela me faz, chorei pela ausência do seu abraço, chorei por já não lhe poder simplesmente ligar e contar-lhe todos os disparates que sempre a faziam sorrir, por não a ter na cozinha de casa dela, a fazer café para nós enquanto conversávamos sobre tudo: a vida, a morte, as cusquices insignificantes, os segredos de família, livros, projectos, filosofias de vida.

Lembro-me de chorar e de dizer a mim mesma que o luto é um sentimento egoísta. Mas de chorar à mesma porque egoisticamente lamento muito já não a ter fisicamente presente na minha vida.

O dia de ramos, nove meses depois, foi caótico. Comprei um grande ramo num shopping e fui a correr para Barcelos, preocupada com o chegar antes de fechar o cemitério.

Não pensei muito sobre o assunto. Entrei e dirigi-me apressadamente para a sua campa. Sabia que tinha 20 minutos antes de se fechar o recinto.

Quando dei por mim, estava ali de novo. Quase dois anos depois.

E de repente fez-se silêncio na minha mente afogueada com a pressa de tudo fazer para chegar a tempo e cumprir com mil outras tarefas ao mesmo tempo.

Pousei as flores e cumprimentei-a. Sentei-me no banco mais próximo e fiquei a olhar silenciosamente para o seu jazigo com uma grande jarra de flores frescas e um ramo de margaridas recém depositadas.

Na minha mente tivemos uma pequena conversa sem palavras. Sorri-lhe e ambas percebemos que quem éramos não tinha mudado, independente da nossa presença ou ausência física. Ambas permanecíamos no sítio onde sempre estivéramos, a conversar sobre tudo ao balcão da sua cozinha. Que ela é tão parte de mim que às vezes só estranho já não poder ouvir a sua voz a dizer as coisas que sempre adivinhava que iria dizer – e que portanto pouco mudou com a sua partida.

Hoje faz dois anos que ela morreu e, como não podia deixar de ser, lá fui em romaria para a missa alusiva. E voltei a entrar no cemitério, desta vez mais tranquila, menos stressada.

A campa estava cheia de flores e vasos, de família e sobretudo amigos que dois anos depois assinalam a sua morte com pesar e que lhe sentem a falta como eu e a demais família. Cumprimentei-a de novo e sorri-lhe cumplicemente, como quem comenta “assim sim! Olha lá quantas flores!” enquanto o resto da família chorava. Pensei para comigo “o luto é um sentimento egoísta. Temos de deixar partir as pessoas que amamos”.

E fui visitar uma outra campa.

Quando saía do cemitério, passei novamente pela campa dela, que fica em caminho e – não sei porque razão – afaguei brevemente a pedra como que a despedir-me.

Não sei explicar.

Ia a falar de banalidades com a minha irmã e afaguei brevemente a pedra como fazia quando passava por ela, num cumprimento silencioso, tipicamente nosso, um quase banal “xau aí, madrinha”. E não era ela. Ela não estava lá. Ela já não é. Já não está entre nós, por muito que o que de si existiu ainda permaneça. A Cremilde já não é. Não está nem estará cá.

E por breves instantes perdi a compostura. As presenças são sensoriais: visuais, auditivas, olfactivas, tácteis, gustativas. E as saudades são exacerbadas por estes pequenos detalhes: uma mulher de costas com o penteado dela, a música que ela cantava, o perfume dela, a lã do casaco sobre as suas costas, o café aguado e fraco da sua chocolateira.

Repeti para mim que o luto é um sentimento egoísta e que queria deixa-la partir levemente, libertá-la, que as suas dádivas nesta vida já tinha sido maiores que a sua conta.

E que a amava o suficiente para não ser egoísta.

Mas confesso que às vezes ainda choro.

1 comentário:

sem-se-ver disse...

(um beijo)