domingo, março 01, 2009

Princesa

Era pequena e só queria passear. Quem ficava de plantão com a Princesa já sabia que o seu mau feitio era sempre contornável com um passeio pelo corredor.

No início passeavamos vezes sem conta em corredores cinzentos, com a máquina da quimio atrás de nós.

Quando pintaram os corredores com bonecos, passeavamos visitando os nossos amigos imaginários.

Nunca queria ir para a sala dos brinquedos, só queria andar e olhar pelas janelas que estavam nas pontas do corredor.

Depois ficou de cadeira de rodas, mas a rotina era a mesma. Com a princesa já sabiamos que o turno era de "fazer piscinas" nos corredores, com a cadeira e a máquina.

Um dia foi para o isolamento, onde as "piscinas" eram impossíveis.

Era temperamental. Tão depressa estava muito contente, como chorava e berrava sem parar. Tinha muito medo de pessoas vestidas com batas verdes.

Toda a gente a tratava com um carinho imenso. Tinha passado lá tanto tempo que era um pouco nossa.

Estavamos habituados a perguntar por ela no início do turno. E a ter uma resposta imediata do pessoal do IPO: um sorriso rasgado quando nos diziam que tinha saído do isolamento, a resignação de quando nos diziam que tinha voltado para lá.

Mas a princesa continuava a piorar. Já não se queixava quando os enfermeiros a manipulavam para lhe dar a medicação, emitindo um brevíssimo gemido de partir o coração a qualquer um.

Tinha mais feridas, mais dores, mais e mais medicação, mas dava sempre um sorriso a quem lhe fizesse uma graçola.

Num domingo, no início do turno, estava a mãe da princesa, a avó e o pai rodeados dos enfermeiros e médicos. Choravam baixinho.

A princesa foi mudada de quarto, para o fundo do corredor, do lado oposto aos outros quartos de isolamento. A cortisona inchou-lhe a cara a proporções inacreditáveis, e apesar de viva, nunca mais a vi acordada.

Eu nem conheço bem os miudos, porque vamos quinzenalmente e, como estão sem cabelo e com as máscaras, geralmente não os reconheço quando melhoram, salvo raríssimas excepções. A ligação que tenho com os pais é mais funcional que outra coisa qualquer, porque a meu ver estou lá para "aliviar um pouco a carga" e deixá-los ir almoçar e sair um pouco, para poderem recuperar forças para o resto do dia, bem como para divertir os miúdos o mais que posso e fazê-los conviver com outras pessoas.

Na maior parte do tempo é um voluntariado tão tão positivo, alegre e cheio de ternura, que seria de imaginar que quem está a fazer voluntariado são os miúdos e não eu.

A princesa teve uma importância tão grande e um impacto tão avassalador que no dia em que percebi que ela ia morrer, tive uma crise de ansiedade e hipocondria, como quando a minha madrinha morreu.

A princesa não viveu mais de 5 anos, mas foi tão tão tão significativa para mim e os que a rodearam, que eu tenho a certeza que nos vamos sempre lembrar dela. E foi nesse dia também que percebi que não adianta enganar-me. Por mais que eu ache que só estou lá 3 horas de 15 em 15 dias, aqueles miúdos são indiscutivelmente parte da minha vida e, embora muitas vezes não saibamos o que lhes aconteceu, uma má notícia terá sempre a carga negativa que equivale à alegria genuína de sabermos que aquela criança ficou boa.

1 comentário:

La fille disse...

o valor do tempo q ns é concedido e indiscutível.