sábado, dezembro 25, 2004

Começa hoje no Loopings o "ciclo António Aleixo" :)

Sobre si mesmo...
Porque o mundo me empurrou,
caí na lama, e então
tomei-lhe a cor, mas não sou
a lama que muitos são.
Sei que pareço um ladrão...
mas há muitos que eu conheço
que, não parecendo o que são,
são aquilo que eu pareço.
Eu já não sei o que faça
p'ra juntar algum dinheiro;
se se vendesse a desgraça
já hoje eu era banqueiro.
A vida na grande terra
corrompe a humanidade.
Entre a cidade e a serra
prefiro a serra à cidade.
Eu não tenho vistas largas,
nem grande sabedoria,
mas dão-me as horas amargas
lições de filosofia.
Gosto do preto no branco,
como costumam dizer:
antes perder por ser franco
que ganhar por não ser.
Não sou esperto nem bruto,
nem bem nem mal educado:
sou simplesmente o produto
do meio em que fui criado.
Sei que umas quadras são conselhos
que vos dou de boa fé;
outras são finos espelhos
onde o leitor vê quem é.
Peço às altas competências
Perdão, porque mal sei ler,
P’ra aquelas deficiências
Que os meus versos possam ter.
Quando não tenhas à mão
Outro livro mais distinto,
Lê estes versos que são
Filhos das mágoas que sinto.
Julgam-me mui sabedor
E é tão grande o meu saber
Que desconheço o valor
Das quadras que sei fazer!


António Aleixo (1899-1949)


Este excelente poeta algarvio teve vários ofícios e passou à história literária sem ter escrito livros.


Quase analfabeto, transmitia oralmente versos que o confirmam como o grande poeta popular que Portugal teve no século XX. O seu poder de observação e crítica, em termos frequentemente lapidares, o seu sentido do ritmo e da rima (até o título que capeia a recolha de suas quadras "Este Livro Que Vos Deixo" rima com o nome do autor, extraído da sua quadra-testamento), a sabedoria que perpassa as suas meditações e improvisações , toda essa panóplia de qualidade poética, valeram-lhe o apoio de amigos nas poucas edições particulares que conseguiu em vida. Falecido em 1949, só a partir da década de 60 a sua obra teria divulgação nacional. A morte terá sido sem dúvida o melhor trevo da sorte que a vida lhe proporcionou, já que o seu percurso existencial foi deveras infeliz e penoso.

António Aleixo, embora soubesse escrever, possuía apenas escassos e rudimentares conhecimentos de ortografia. Consciente das suas limitações, andava pelas feiras dedilhando uma guitarra, cantando, não só porque lhe dava prazer, mas porque para tal era ávidamente solicitado. A cultura adquire-se nas escolas e nos livros. A sensibilidade é inerente e exclusiva dos seres humanos e varia de indivíduo para indivíduo, nada devendo à instrução que se adquire através dos estudos, como muita gente erradamente presume.

António Aleixo começou por ser guardador de cabras. Depois soldado e também polícia. Aleixo foi pobre... Mas não de espirito! Carenciado e aflito económicamente sim, mas nunca ladrão, e como muitos milhares de outros resolveu emigrar para França em busca de melhores dias. Cansado de estrangeirismos e sem os resultados que julgava poder colher, voltou para o sol de Portugal que não lhe deu melhor fortuna. Aleixo deambulou de rua em rua a apregoar e a oferecer a "sorte grande" aos outros.

Quanto à poesia de António Aleixo, houve, há e haverá quem afirme que não tem interesse, porque quase toda a sua produção poética se confina a quadras e entre nós a quadra, sobretudo a de metros curtos, é tida como uma forma de expressão poética menor (a léria dos snobs!), e isso talvez com a ideia de que quem quer faz uma quadra. Porém, não é assim. Teve-se o ensejo de verificar, aquando da elaboração de "Livros de Curso", que universitários finalistas não eram capazes de fazer uma quadra. Além disso, há quadras e quadras…

No Brasil, há já, pelo contrário, grande interesse pela quadra, a que dão, a meu ver impropriamente, o nome de trova. A explicação advém certamente de ter sido a quadra uma das estâncias favoritas dos trovadores. A quadra em redondilha-maior tornou-se assim num rio onde Aleixo se sentia como peixe em ambiente próprio. Acresce ainda que, apesar de ser um poeta popular, as suas quadras têm um bom cunho literário. Nunca lhe faltam 4 rimas, cruzadas ou interpoladas, e são foneticamente esmeradas. Despreza a rima soante e é verdadeiro malabarista de verbos, trabalhando em trocadilhos de extraordinário efeito.
Constate-se o magnífico pendor do poeta para a quadra de crítica social.

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