terça-feira, setembro 06, 2011

Siddahrta

"Vê, Kamala: quando atiras uma pedra à água, ela procura o caminho mais rápido para o fundo. Assim é quando Siddharta tem um objetivo, uma intenção. Siddharta nada faz, espera, pensa, jejua, mas passa pelas coisas do mundo como uma pedra passa pela água, sem fazer nada, sem se mexer: ele é atraído e deixa-se cair. O seu objetivo arrasta-o, pois ele não admite na sua alma nada que pudesse interpor-se entre ele e o seu objetivo. Foi isto que Siddharta aprendeu com os samanas. É a isto que os ingénuos chamam de encantamento, pensando que é obra dos demónios. Os demónios nada fazem, não existem demónios. Todos podem dominar estes encantamentos, todos podem alcançar a sua alma, desde que saibam pensar, esperar, jejuar.
Kamala ouviu-o até ao fim. Ela amava a voz dele, amava o brilho dos seus olhos."

"Muito bem. E o que tens tu para me dar? O que aprendeste, o que sabes fazer?
- Sei pensar. Sei esperar. Sei jejuar.
- Isso é tudo?
- Penso que é tudo!
- E para que serve isso? O jejuar, por exemplo, para que serve?
- É muito útil, senhor. Quando um homem nada tem para comer, jejuar é a coisa mais inteligente a fazer. Se, por exemplo, Siddharta não tivesse aprendido a jejuar, teria hoje de aceitar qualquer serviço, em tua casa ou noutro lugar, porque a fome a isso o obrigaria. Mas assim Siddharta pode esperar, não conhece a impaciência e não passa dificuldades, pode enfrentar a fome durante muito tempo e rir-se dela. Por isso, senhor, o jejuar é útil."

"Escrever é bom, pensar é melhor. Inteligência é bom, paciência é melhor."

"Não estou a brincar. Digo-te aquilo que descobri. Podemos partilhar conhecimentos, mas não a sabedoria. Podemos encontrá-la, podemos vivê-la, podemos ganhar importância com ela, podemos fazer maravilhas com ela, mas não podemos comunicá-la ou ensiná-la. Foi isto que por vezes pressentia quando ainda era um aprendiz, aquilo que me afastou dos mestres. Descobri uma ideia, Govinda, que tu tomarás por troça ou loucura, mas que é a minha melhor ideia. É assim: para cada verdade, o contrário é igualmente verdade! Mais concretamente: uma verdade apenas se deixa exprimir em palavras quando é parcial. Tudo o que pode ser pensado com o pensamento ou dito com palavras é parcial, tudo é parcial, tudo é metade, a tudo falta totalidade, integridade, unidade. Quando o sublime Gotama ensinava acerca do mundo , era obrigado a dividi-lo em Sansara e Nirvana, em ilusão e verdade, em sofrimento e libertação. Não podia ser de outra forma, não há outro caminho para aqueles que querem ensinar. Mas o mundo, aquilo que existe à nossa volta e dentro de nós, nunca é parcial. Uma pessoa ou uma ação nunca são completamente Sansara ou Nirvana, uma pessoa nunca é completamente santa ou completamente pecadora. Parece assim porque estamos subjugados pela ilusão de que o tempo é algo real. O tempo não existe, Govinda, vi-o inúmeras vezes. E se o tempo não existe, também não existe a aparente diferença entre o mundo e a eternidade, entre o sofrimento e a bem-aventurança, entre mal e bem, é também uma ilusão."

"O pecador não está a caminho de se transformar no Buda, não está a evoluir, embora a nossa maneira de pensar não consiga apresentar a situação de outra forma. Não, o futuro Buda está já, aqui e agora, no pecador, o seu futuro está já todo lá, tens dentro dele, dentro de ti, em todos os que se transformam, um Buda oculto para venerar. O mundo, amigo Govinda, não é imperfeito nem está preso num caminho lento para a perfeição: não, o mundo é perfeito em todos os instantes (...)"

In Siddharta, Herman Hesse

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